Prof. Dr. Warwick Estevam Kerr, meu querido mestre, pai científico e amigo.
Por Prof. Dr Lionel Segui Gonçalves (publicado em 25/09/18)
A tristeza em que me encontro para redigir este texto sobre o falecimento, no último dia 15/9/2018, de meu querido Mestre, Pai científico e Amigo, Prof. Dr. Warwick Estevam Kerr, meu orientador de doutorado na USP, não é maior que a alegria e o grande prazer que sinto em enaltecer as qualidades desse homem do bem, honrado, religioso, exemplar pai de família: sua vida representa para mim um dos maiores exemplos de cidadania, amor à ciência e amor ao próximo. O Brasil perde um dos maiores expoentes da ciência nacional, e a Apicultura e a Meliponicultura brasileiras deixam de contar com um de seus mais importantes incentivadores.
Entidades científicas de grande prestígio beneficiaram-se de sua dedicação e administração em favor da ciência, como a Sociedade Brasileira de Genética e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, das quais foi Presidente; a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), da qual foi o primeiro Diretor Científico; e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, do qual foi Presidente por duas vezes. Diferentes instituições universitárias contaram com as atividades de ensino, pesquisa e extensão do Prof. Kerr, como a Universidade Federal de Uberlândia e a Universidade Estadual do Maranhão, da qual foi também reitor.
Dois anos após ter se formado como engenheiro agrônomo na ESALQ-Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, de Piracicaba, USP, concluiu seu doutorado sobre genética de abelhas sem ferrão e, em seguida, foi convidado como docente pelo Instituto Isolado ou Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Rio Claro-SP (posteriormente UNESP), tendo ali criado o Departamento de Biologia. Ainda como docente da Biologia, o Prof. Kerr foi convidado pelo então Governador Carvalho Pinto a ocupar o cargo de primeiro diretor científico da recém-criada FAPESP, tendo sido o responsável pelas eficientes normas e diretrizes que tornaram a instituição uma entidade exemplar de apoio à ciência e à pesquisa no Estado de São Paulo, cujo modelo foi posteriormente copiado por outros estados do Brasil. Em 1964, ainda como diretor científico da Fapesp, e mesmo não sendo médico, Dr. Kerr recebeu do diretor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP) o desafio de fundar o Departamento de Genética. Em 29/11/1964 o Prof. Kerr assumiu o cargo de Professor de Genética da FMRP.
Nesse departamento, ele criou o Setor de Genética de Abelhas, do qual fui seu primeiro responsável, como doutorando do Prof. Kerr, entre outros setores criados posteriormente ( Genética Bioquímica, Citogenética e Mutagêneses, Genética de Microorganismos, Genética Quantitativa e de Populações, Genética Evolutiva e Genética Médica e Clínica) ,que viriam a compor um dos primeiros, senão o primeiro departamento interdisciplinar integrado da Universidade de São Paulo.
É importante destacar que antes da chegada do Prof. Kerr à FMRP-USP, os conhecimentos de genética eram ensinados aos alunos de medicina em alguns capítulos de disciplinas do Departamento de Morfologia. Em 6/3/1965 o Prof. Kerr ministrou a primeira aula da disciplina de genética na FMRP e que se constituiu inclusive na primeira disciplina de genética oferecida em um curso de medicina no Brasil, disciplina essa ministrada pelo engenheiro agrônomo e seus colaboradores.
Graças a essa sua empreendedora capacidade ímpar de liderar e aglutinar pessoas dedicadas a ciência, professores, pesquisadores, alunos, estagiários e técnicos de outras unidades da USP passaram a compor sua equipe e a trabalhar sob um mesmo teto, formando-se então o “Primeiro Laboratório Integrado Inter-unidades de Genética da USP” em Ribeirão Preto. Docentes da FMRP, da Faculdade de Filosofia (FFCLRP) e da Faculdade de Odontologia (FORP) trabalhavam assim, de maneira integrada, em cursos de graduação e pós-graduação e desenvolviam conjuntamente projetos de pesquisas e serviços de extensão, numa verdadeira harmonia proporcionada pelo entusiasmo do Prof. Kerr, que gostava de repetir “a união faz a força”. Embora eu fosse docente da Faculdade de Filosofia, tendo sido inclusive Diretor daquela unidade da USP, nunca ocupei sala ou tive laboratório nas dependências da Filosofia; trabalhei sempre no Departamento de Genética, onde fiz meu doutorado, defendi minha livre-docência, desenvolvi minhas pesquisas e tive a felicidade de realizar meu concurso de Professor Titular na Faculdade de Filosofia.
Destaco entre os resultados concretos e extremamente positivos dessa integração, o fato de oDep. de Genética da FMRP, por ocasião de seus 40 anos de atividades, em 2011, já contar em seu histórico mais de 700 titulações (326 mestrados e 367 doutorados), 30% das quais sobre temas relacionados a abelhas; além de inúmeros papers,publicados nas mais importantes revistas científicas do país e do exterior, sendo na ocasião um dos Departamentos mais produtivos da FMRP e da USP. A substanciosa relação de obras educacionais ( 3 Teses, 471 Publicações Científicas e Técnicas, 262 Resumos, 13 Livros, 22 Capítulos de Livros, 12 Revisões entre outras obras ) , ampla relação de orientados e colaboradores no Brasil e no exterior formam o valiosíssimo currículo do Prof. Kerr, acervo digno de constar das mais importantes bibliotecas de nosso país, como exemplo e modelo de dedicação ao ensino e à pesquisa. E para além do legado educacional, científico e administrativo, há ainda que lembrarmos sua luta em defesa dos mais injustiçados – atitudes que lhe ocasionaram inclusive perseguições e prisões políticas. Todas essas ações compõem um legado raramente visto no curriculum vitaede um indivíduo que não fosse dotado das melhores qualidades intelectuais e humanísticas possíveis em um ser humano.
Quanto à sua obra científica, versada propriamente sobre as abelhas, cumpre-nos a tarefa de destacar alguns momentos que consideramos cruciais. Durante meus 55 anos de carreira, intensamente vividos ao lado do Prof. Kerr como seu discípulo e seguidor, trabalhando com as abelhas africanizadas, colaborei e testemunhei sua inquieta, intensa e permanente vontade de ajudar os apicultores a superar os problemas advindos da introdução das abelhas africanas no Brasil e a desenvolver a meliponicultura no país. Embora a maioria de suas publicações tenham sido sobre as abelhas-sem-ferrão, sua vida profissional ficou internacionalmente marcada pela introdução das abelhas africanas no Brasil e suas consequências. Acompanhei, desde 1963 até os dias de hoje, todas as fases do processo de africanização dessas abelhas no Brasil e nas Américas, que foram logo alcunhadas pela mídia como “killer bees”, abelhas assassinas.
No “período caótico”, entre 1964 e 1980, quando houve maior número de acidentes com mortes de animais e pessoas, fui testemunha de sua ansiedade, sofrimento e profundo desejo de encontrar uma solução para a agressividade dessas abelhas descendentes das rainhas que ele trouxera da África em 1956. Não foram dias fáceis, muitos dos quais extremamente dolorosos, sobretudo quando chegavam notícias graves que apontavam para o seu nome como introdutor das abelhas e principal responsável. Nessas ocasiões, alvo de uma mídia massacrante, sempre admirei o comportamento sereno do Mestre apesar da tensão reinante; somente uma pessoa altamente equilibrada e dotada de sérios princípios e convicções religiosas poderia resistir. Lembro-me de que sua orientação principal a nós, seus colaboradores na missão, era sempre direcionada aos estudos e métodos de manejo das abelhas, para que pudéssemos controlar essas abelhas, uma vez que sua biologia era até então totalmente desconhecida.
Sua persistência na direção de se controlar a agressividade das abelhas pelo manejo já era fruto de sua experiência cientifica, e a história revelou que ele estava correto: como não conhecíamos a biologia dessas abelhas, e esse conhecimento demandaria muito mais tempo em pesquisas, cabia-nos fazer algo mais imediato, desenvolver tecnologias de manejo.
Graças então aos estudos de manejo, aos poucos seus colaboradores, técnicos e orientados, tanto da Genética como de outras instituições, gradativamente descobriam diferentes variáveis que interferiam na redução do comportamento agressivo das abelhas, e destaco aqui exemplos simples como um bom uso dos fumegadores, maior espaçamento entre as colmeias, não manipulação das abelhas em dias chuvosos, uso de vestimentas claras, etc., essas e outras orientações iam sendo devidamente testadas, cientificamente comprovadas e compartilhadas com a sociedade.
Trabalhávamos constantemente sob o olhar e a pressão da mídia, eu sentia que o Mestre sofria a cada noticia de acidente com abelhas, mas também tinha certeza de que seus princípios religiosos e seu amor a um ente superior, nosso Deus, era o esteio que o mantinha esperançoso de dias melhores. Assim, muitos outros métodos científicos para reduzir a agressividade das abelhas foram sendo utilizados, como irradiações com bomba de cobalto para obter mutantes mais mansos, e as milhares de rainhas italianas que distribuímos por todo o país para hibridizar as colônias de abelhas em direção a uma linhagem mais mansa que o querido mestre pretendia obter para compartilhar com os apicultores.
Durante esse período houve evolução expressiva da apicultura brasileira. Antes da chegada das abelhas africanas ao Brasil, em 1956, a produção apícola nacional oscilava em torno de 4 a 5 mil toneladas de mel por ano, e a apicultura era praticada com abelhas Apiseuropeias, introduzidas pelos imigrantes europeus, sobretudo pelos alemães que colonizaram o sul do Brasil. Nessa época, a criação de abelhas era praticada como hobby,com vistas a polinização de pequenos pomares e produção de mel. A baixa produtividade da apicultura brasileira na década de 50, comparada com a superior produção apícola de países vizinhos, como a Argentina, levaram o Prof. Kerr a fazer um estudo sobre as raças de abelhas, tendo ele constatado que, na África, existiam abelhas mais produtivas que as europeias introduzidas no Brasil.
Em 1956, Dr. Kerr decidiu, então, importar as abelhas africanas Apis mellifera scutellata. Essas abelhas atraíram sua atenção em virtude da alta produtividade, alta capacidade de adaptação, resistência a doenças e alta taxa de enxameação. Seu intento era fazer uma seleção genética das características mais importantes e distribuir matrizes com essas qualidades aos apicultores brasileiros. As rainhas africanas, importadas pelo Prof. Kerr para estudos, foram introduzidas em colmeias de abelhas Apiseuropeias no Horto Florestal de Camaquã, em Rio Claro-SP onde foram deixadas em quarentena.
Entretanto, um apicultor visitante, ao constatar que as abelhas estavam perdendo grãos de pólen na entrada das colmeias, devido ao uso das telas excluidoras de rainhas e zangões instaladas na entrada das colmeias, resolveu remover as tais telas sem avisar ao Prof. Kerr, que apenas tomou conhecimento do fato quando já haviam sido iniciadas as enxameações. As enxameações e consequentes africanizações das abelhas em ambiente natural deram origem às abelhas poli-híbridas africanizadas antes, porém, de o Prof. Kerr lograr a seleção genética programada em laboratório. Os acidentes repetiam-se com frequência, principalmente devido à falta de conhecimento dos métodos de manejo dessas abelhas.
De 1956 a 1980 viveu-se o “caos da apicultura brasileira” e a redução da produção apícola foi inevitável. Na medida em que as abelhas africanizadas chegavam, ocorria o abandono da atividade apícola em face da temida agressividade dessas abelhas. Na década de 60, foi criada no Rio Grande do Sul a Confederação Brasileira de Apicultura, da qual o Prof. Kerr participou. Iniciavam, entre os apicultores do sul do Brasil, as discussões sobre o que fazer com essa nova e desconhecida abelha. Em 1970, foi então realizado o Primeiro Congresso Brasileiro de Apicultura, em Florianópolis-SC, do qual toda a equipe do Prof. Kerr tomou parte, sendo o tema principal do referido congresso a “agressividade”. A partir desse congresso, aconteceram muitas ações apícolas nas Associações de apicultores e também reuniões científicas em vários centros universitários do Brasil, com grande destaque para as atividades nos laboratórios da USP de Ribeirão Preto, sob a liderança do Prof. Kerr e seus colaboradores.
Entre 1970 e 1980 houve grande salto de conhecimentos sobre a biologia e o manejo das abelhas africanizadas, com a contribuição dos cursos de pós-graduação iniciados em 1971. Na década de 1980, a agressividade das abelhas foi deixando de ser pauta constante na mídia e já não era o principal tema dos congressos. Nesse período, o associativismo foi muito incentivado em vários estados do país e a produção apícola nacional aumentava gradativamente. No entanto, lembro-me de que o cenário promissor não era suficiente para aliviar o pesadelo que assombrava Dr. Kerr. Em mais de uma ocasião, meu querido Mestre comentou: Será que algum dia conseguirei me livrar desse terrível trauma que é a agressividade dessas abelhas?
De 1990 a 2000 nossa produção apícola atingiu a quantidade de 40 mil toneladas de mel/ano. A apicultura brasileira florescia. Nos anos 2000, o nordeste brasileiro não apenas passou a figurar nas estatísticas de produção de mel, mas como região responsável por aproximadamente 1/3 da produção apícola nacional. A apicultura em nosso país parecia estar numa nova fase de expansão. Entretanto, em 2009, a APIMONDIA-Federação Internacional de Apicultores- fez um grave alerta durante o congresso mundial de apicultura da França sobre o perigo oferecido pelos pesticidas à apicultura francesa e sobre o risco de o mesmo fenômeno vir a ocorrer em outros países.
Infelizmente, a partir de 2012, a apicultura e a meliponicultura brasileiras também padeceriam sob a ação do uso indiscriminado de pesticidas na agricultura. Com isso, nova batalha se impôs: a luta contra os pesticidas. O tema da “agressividade das abelhas” passava a ser substituído pelo tema “pesticidas e a morte das abelhas”. Praticamente todos os estados brasileiros vivem, desde então, o drama de sucessivas perdas de abelhas por morte e desaparecimento das abelhas ou CCD (Collony Colapse Disorder) provocados sobretudo pelo uso de agrotóxicos sistêmicos. O uso de neonicotinoides e de inseticidas de amplo espectro, como o fipronil, constituem hoje o principal problema enfrentado pela apicultura e meliponicultura brasileiras. Na Europa, nos Estados Unidos e em outros países, atribuem-se frequentemente a mortalidade de abelhas e o CCD sobretudo ao ácaro Varroa destructor.
No Brasil, entretanto, a mortandade de abelhas não encontra explicação nesta patologia. As abelhas africanizadas são resistentes ao ácaro Varroa destructordevido aos genes recessivos do comportamento higiênico, e essa resistência natural evita o uso de acaricidas contra essa praga, poupando nossas abelhas e o nosso mel de resíduos químicos. Em nosso país, graças ao melhoramento genético de nossas abelhas, não há estatísticas de perdas expressivas de colmeias devido à varroatose. Já há vários anos e em diversas oportunidades tive a felicidade de ouvir comentários no seguinte teor: “Que fantástico, que visão maravilhosa a desse professor que introduziu as abelhas africanas no Brasil, temos uma abelha produtiva e altamente resistente a doenças e pragas”.
É com esse legado, portanto, que a apicultura nacional se desenvolve com uma produtividade que já ultrapassa as 50 mil toneladas de mel ao ano; e para além da quantidade, nosso mel é também internacionalmente reconhecido por sua excelente qualidade, incluindo expressiva produção de mel orgânico. Afirmo, finalmente, que a agressividade não é mais o principal problema da nossa apicultura.
Caro Mestre, sobre aquela sua pergunta, se um dia você conseguiria se livrar do trauma da agressividade das abelhas africanizadas, ela já foi devidamente respondida. Portanto, meu querido Dr. Kerr, como um de seus seguidores, kerzista com muito orgulho, e especialista em genética de abelhas africanizadas, com muita humildade e segurança, reafirmo:VOCE CONSEGUIU!
Descanse em paz, sob a proteção divina de quem você sempre confiou e acreditou, nosso Deus. Aqui fica minha mais pura e sincera homenagem a este grande cientista brasileiro.
(Prof. Dr. Lionel Segui Gonçalves-Email:lsgoncal@ffclrp.usp.br) (LSG, 25/09/2018).
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